Moçambique: conselheiro vê evolução, mas autorregulação precisa avançar

27/10/2025 06:14

Meio século não foi suficiente para Moçambique consolidar um jornalismo crítico e independente, mas o país segue seu caminho. A avaliação é do jornalista Alexandre Chiúre, profissional com 44 anos de profissão, com passagens pelo Diário de Moçambique, Savana, Mediafax, TV Sucesso e do português Diário de Notícias, do qual foi correspondente. Membro do Conselho Superior de Comunicação Social, Chiúre é uma das onze pessoas que atuam no órgão que trata de temas éticos do jornalismo no país. Composto por delegados do governo, dos poderes legislativo e judiciário e por representantes dos jornalistas, o conselho tem atribuições nacionais, e seus membros cumprem mandatos de cinco anos, devidamente empossados pelo presidente da República.
Chiúre é um dos três jornalistas no colegiado. Para além dessa função, tem sido um observador privilegiado nas últimas décadas, marcadas pela independência de Portugal, pela abertura do setor de comunicação e pelas tentativas de profissionalização do jornalismo.
Na entrevista a seguir – concedida em outubro por videochamada de dentro de um automóvel numa das ruas de Maputo -, Chiúre avalia a condição atual e o futuro imediato do jornalismo moçambicano.

Na condição de conselheiro, como analisa o jornalismo praticado em Moçambique atualmente?
O nosso jornalismo cresceu, não há dúvida até porque antes os órgãos de informação eram dirigidos por portugueses, e neste momento, são 100% moçambicanos de origem negra. São chefes de redação, editores e diretores, e isso significa crescimento. Além disso, foram criados vários órgãos de formação. O governo abriu o setor de televisão e rádio que era monopólio do Estado, e há investimentos nessa área, mas eles são limitados a 20% quando são estrangeiros, por força de lei. No momento, estamos a discutir a revisão da Lei de Imprensa, que é de 1991, e que vai passar a se chamar Lei da Comunicação Social. Nela, há a proposta de subir a 35% a participação estrangeira nas sociedades jornalísticas. Desde a Constituição de 1991, a família da comunicação cresceu do ponto de vista numérico porque surgiram jornais, revistas e canais de rádio e televisão. O que nos preocupa neste momento, como conselheiros, são os problemas éticos e deontológicos. Aí, não houve crescimento assinalável.

Que problemas são esses?
Há problemas muito sérios. Os jornalistas que estão nesses órgãos de informação são bastante jovens, e ainda precisam aprender muito, e notamos também que vários órgãos atropelam os princípios éticos. Vou dar alguns exemplos. A polícia tem tido encontro com os jornalistas e neles, apresentado aquilo que chamam de “bandidos”, pessoas presas e que ainda não foram julgadas, mas cujas caras são exibidas na televisão. Isso significa condená-las nas câmeras antes de qualquer pronunciamento do juiz. Estamos a fazer um trabalho bastante forte nesses casos, reforçando que, até prova em contrário, há a presunção de inocência, conforme diz a lei moçambicana. Não se pode mostrar caras de qualquer que seja o preso antes de ser julgado e condenado em tribunal. Chamamos a atenção e isso começa a melhorar pouco a pouco. Mas ainda ficamos preocupados porque às vezes mostram a cara de mulheres ou meninas que foram violadas, por exemplo. E isso não pode também porque traz bastante problemas para elas. Também temos insistido para que os jornalistas investiguem as matérias antes de colocá-las no ar, e que cuidem para não difamar as pessoas. Quando esses assuntos nos chegam no conselho, observamos que isso acontece por violação a questões éticas: o jornalista não investigou o suficiente e correu para publicar sem cruzar informações e ouvir todas as partes da história. É um trabalho contínuo que notamos alguma melhoria, mas ainda há muito caminho por percorrer.

Esses problemas éticos são resultados de um código deontológico desatualizado ou de uma lei de imprensa antiga? Ou ainda da falta de reconhecimento do sindicato?
O código de ética está atual, não tem problema nenhum. A lei de imprensa, sim, está ultrapassada porque é uma manta que já não cobre toda a família da comunicação social, como os órgãos de informação digitais. Do ponto de vista de regulamentação do setor, essa parte ficou sem cobertura. Por isso, a nova lei está em debate público. O sindicato é reconhecido, mas, na verdade, está inoperante. Há problemas no setor que não vemos a mão do sindicato para resolver. Temos jornalistas que são contratados via SMS! Eles não têm contratos, e quando o empregador não paga o salário, o jornalista não tem como reclamar porque está sem base legal para exigir condições. Outro problema é o dos salários, e há jornalistas que recebem abaixo do salário mínimo nacional! Isso é uma irregularidade, e o sindicato devia trabalhar nessa matéria.

Os jornalistas moçambicanos não têm carteira profissional?
Estamos há mais de vinte anos a debater a necessidade da introdução da carteira. Eu próprio já fiz parte dos debates nas províncias para a revisão da lei de imprensa e da questão da carteira, e entregamos documentos para o governo, mas ele simplesmente arquivou. Tentamos antes e nada. Todos os primeiros-ministros que tivemos receberam os resultados dos debates, mas não avançamos. Os mais antigos, como eu, ficam com vontade de atirar a toalha ao chão porque não temos certeza de que esse governo ou o próximo resolvam isso. O processo envolveu o Conselho Superior da Comunicação Social, os sindicatos dos jornalistas e o MISA, que é uma organização de monitoria do setor. Fizemos o trabalho de compilar todas as opiniões dos jornalistas para incorporar essas contribuições na lei, para ser entregue ao presidente e ele, encaminhar à Assembleia da República. Não avançou. Esperamos que desta vez seja algo sério.

É possível haver uma regulação do jornalismo em Moçambique que não seja atravessada pelo Estado?
É possível porque não existe só o Sindicato Nacional dos Jornalistas – que sofre muita influência do governo -, mas há outras instituições que zelam pela atividade jornalística, como o Conselho Superior da Comunicação Social e o MISA. E como é possível, o próprio sindicato pode ser arrastado a integrar esses processos. Por exemplo: houve entendimento do governo de que a carteira profissional tem que ser por autorregulação. Não tem que ser o governo a fazer isso. Nas versões anteriores da lei, dizia que a carteira seria entregue para uma entidade governamental, e nós caímos em cima, e o governo acabou voltando atrás e passou a concordar na base de autorregulação. Está em debate também é se transformamos o Conselho Superior de Comunicação Social em órgão regulador ou se criamos um novo órgão.

O que o governo pensa disso?
O presidente da república [Daniel Chapo] é um jurista, e acha que não convém criar um novo órgão, mas transformar o já existente, o Conselho, que está na Constituição como órgão de consulta e disciplina. Como é assim, pressupõe aplicar sanções, sendo necessário revisar o texto constitucional e tornar isso claro. Há quem defenda criar um órgão novo, mas isso esvaziaria o atual.

Como o país está se preparando para esse novo cenário?
Uma delegação composta por membros do gabinete de Comunicação Social e do Conselho vai a Portugal para buscar experiência sobre como é que eles lá fazem isso. Os portugueses justamente transformaram o Conselho Superior da Comunicação Social em um órgão regulador [a Entidade Reguladora da Comunicação].

Este modelo, apoiado numa autoridade reguladora, é um bom modelo para Moçambique?
Eu acho que sim porque vai racionalizar os recursos. Como já existe uma instituição, é questão de adaptá-la ao que se pretende, pois a Constituição já dá atribuições no sentido de disciplinar o setor. Quando a pessoa sai fora das regras, tem que ser castigada, punida. Este pode ser um bom modelo para Moçambique e para o próprio governo que prometeu não ter muitos ministérios nem criar mais órgãos. Temos que avançar e o governo também.

Em 2025, Moçambique está celebrando 50 anos de sua independência. Como avalia a liberdade de imprensa no seu país?
Houve uma evolução muito grande mas ainda é um produto inacabado. Temos que continuar a trabalhar e a pressionar o governo e outras instituições para que respeitem as liberdades dos meios. É verdade que há também algum exagero no exercício dessas liberdades por parte dos jornalistas, e às vezes, uma confusão entre liberdade e libertinagem.

Como assim? Pode explicar melhor?
Às vezes, o jornalista acha que está acima de todos os direitos dos cidadãos. A liberdade de imprensa é um direito fundamental, mas não deve se sobrepor aos outros direitos. Onde termina a liberdade de um, começa a do outro. Privacidade, por exemplo, é um direito de todos, está na Constituição, e não pode ser ignorado pelo jornalista. No geral, houve melhoria nesses anos todos, mas quanto mais nos afastamos da capital do país, mais esses direitos ficam afunilados. Nas outras províncias, continuamos a ter focos de violência: arrancam materiais dos jornalistas e impedem que eles trabalhem e façam suas denúncias. Esses casos tendem a diminuir a pouco e pouco, mas é um trabalho contínuo para conquistarmos cada vez mais liberdades. O que os jornais privados publicam hoje nas suas capas era impensável no passado. Podem colocar o filho do presidente da República na primeira página e acusá-lo de corrupção, por exemplo. Tem havido cada vez mais atrevimento e coragem por parte do setor privado da comunicação social em publicar assuntos desses. Outro dia publicaram o caso que envolvia o filho de um ex-presidente, e essa matéria era tabu antes. A publicação já é um termômetro de que alguma coisa melhorou mas é preciso trabalhar mais. Houve uma melhoria significativa no exercício da liberdade de imprensa em Moçambique, ficando ainda por melhorar questões, como eu já falei, de jornalismo investigativo e também questões relacionadas com a ética e a deontologia profissional.

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